quinta-feira, 2 de julho de 2009

Trajédia

Sim, nós corríamos perigo.
Dois anos se passaram desde que viemos ao Brasil. Meus pais e meu irmão sempre agiram de forma estranha, como se um inimigo estivesse à espreita, aguardando o momento oportuno para atacar. Alguma coisa tinha que ter a ver com aquele episódio na Índia, no qual meu pai ganhara muito dinheiro. Mas não se falava nesse assunto na minha frente. Na verdade, meus pais e Kashi deviam pensar que eu acreditava que não se falasse nesse assunto de modo algum. Infelizmente, a verdade tem o irritante hábito de vir à tona.
Era verão. Após tanto tempo trabalhando duro, meus pais finalmente tinham conseguido dinheiro suficiente para termos uma situação estável. Decidimos fazer uma pequena viagem à praia. A família estava em êxtase: sempre gostamos muito de viajar. Meu pai insistiu que levássemos umas mercadorias para tentar algum lucro, mas mamãe disse que ele estava obcecado pelo trabalho e que esta viagem era turística, apenas. Papai não teria dado ouvidos se Kashi não tivesse concordado que um descanso lhe faria bem à saúde.
Partimos de São Paulo sábado pela manhã. Nosso alojamento, como de costume, seria nosso trailer: já havíamos reservado um local em um espaço de camping, próximo à praia. Eu nunca fui muito chegada a entrar no mar: sempre achava a água muito fria. Kashi costumava dizer que fria era eu, pois sempre estou com as mãos e os pés gelados. Mamãe me levou ao médico certa vez, com medo de eu apresentar baixa circulação sangüínea, mas foi constatado que, por algum motivo, minha temperatura corpórea está sempre abaixo do normal. Não se descobriu o motivo, mas sendo eu uma garota saudável apesar disso, o médico mandou mamãe não se preocupar. "O corpo dela é um pouco diferente, mas ele está acostumado assim, então não tem problema", disse.
Três dias passamos nos divertindo muito. Eu não conseguia me lembrar a última vez em que tínhamos passado tanto tempo juntos, sem estarmos trabalhando. Aqueles, com certeza, foram os três melhores dias da minha vida.
Até que nos encontraram.
Era o começo do quarto dia de viagem. O sol ainda estava nascendo no horizonte quando acordamos com a porta do trailer sendo arrombada. Um homem muito grande e forte entrou, e, encontrando minha mãe próxima à porta, a puxou para fora pelos cabelos. Eu comecei a gritar. Papai gritou à Kashi que me protegesse. Em um piscar de olhos meu irmão estava ao meu lado, com a mão sobre a minha boca, impedindo que eu continuasse a gritar. Papai saiu correndo pela porta. Eu ouvia gritos. Kashi me puxou até a janela dos fundos e me forçou a passar por ela: eu mal conseguia me mexer, toda a resposta que eu parecia conseguir de meu corpo eram as lágrimas que corriam livremente pelo meu rosto. Eu ouvia papai gritando com alguém, um homem, de voz muito grave, mas não era possível discernir o que eles estavam dizendo, pois suas vozes eram abafadas pelos berros de minha mãe. Kashi me puxou pela mão até a orla de uma pequena floresta que havia próxima ao trailer. Tropecei em alguma coisa no exato momento em que se ouviu um tiro, e o grito de um homem. Eu não conseguia raciocinar, apenas continuar chorando. Kashi se voltou à direção do trailer e permaneceu imóvel por alguns segundos. A expressão horrorizada em seu rosto foi-se transformando em uma de ódio, e ele deu um passo à frente. Seu olhar cruzou com o meu, e ele pareceu mudar de idéia: ao invés de correr em direção a onde estavam nossos pais, do outro lado do trailer, com um único movimento ele me colocou em suas costas, e correu para dentro da floresta. Correu com o que parecia ser todas as suas forças. Os gritos ficavam cada vez mais distantes. Ouviu-se um segundo tiro, e mais gritos. Parecia que os outros turistas do camping haviam acordado. Comecei a me sentir nauseada. A mata à minha volta tornou-se um borrão, girando em torno de mim. Meus ouvidos deram um apito agudo e então minha visão escureceu.
Não sei dizer quanto tempo depois eu acordei. Estava deitada no chão, ao lado de uma grande moita, com Kashi a poucos metros de mim. Ele chorava enquanto andava de um lado ao outro, ocasionalmente dando murros em árvores próximas a ele. Demorei um pouco para entender o que estava acontecendo. De repente, os últimos minutos de horror voltaram à minha mente, como uma enxurrada que se tenta, mas não se pode conter. Voltei a chorar. Ficamos assim, eu deitada em prantos e Kashi esmurrando árvores, por bastante tempo. Os tons da floresta começavam a se tornar alaranjados com o entardecer quando Kashi disse para voltarmos.
Admirei a capacidade de meu irmão de encontrar o caminho, trilhado anteriormente às pressas e em meio a sentimentos de medo e ódio. Quando já se podia avistar o acampamento vagamente por entre a folhagem, Kashi mandou-me permanecer escondida. Eu quis protestar ao vê-lo ir em direção ao camping, mas ele saiu decidido, sem sequer olhar para trás.
Ansiosamente esperei até que ele retornasse. Minutos pareciam horas. Meu coração pareceu saltar de alegria e alívio ao ver meu irmão retornando, tempo depois. Ele trazia um bilhete, que em letra garranchada dizia "Fiquem longe do nosso caminho, ou não os pouparemos de novo". Claro como água, agora tudo parecia fazer sentido para mim. Estávamos fugindo. Esse tempo todo, éramos fugitivos daqueles homens. A viagem às pressas para o Brasil, o medo que assombrava o rosto de meus pais, tudo parecia se encaixar como um terrível quebra-cabeças.
Voltamos silenciosamente ao trailer. A polícia parecia ter passado por ali: o local estava cercado por fitas impedindo a passagem de curiosos, mas não havia ninguém no local, exceto por um único guarda a uns 20 metros de distância do nosso trailer.
Kashi fez sinal para que eu ficasse calada. Sorrateiramente, ele abriu a porta do motorista, a mais próxima da floresta, do lado oposto onde o policial se encontrava. Entrei no trailer e escorreguei para o banco do passageiro, evitando olhar pela janela e ver o local onde meus pais haviam sido mortos, mesmo sabendo que seus corpos não estariam mais ali. Kashi sentou-se ao volante, prendeu o cinto de segurança e me mandou fazer o mesmo. Assim que ele ligou o motor, saímos em disparada, passando por cima da faixa da polícia que marcava o perímetro do crime. Kashi ignorava os gritos vindo do policial, que inutilmente corria atrás do trailer, acenando enquanto gritava no seu rádio. Eu olhava assustada pelo retrovisor e em seguida para meu irmão, não entendendo o que ele estava fazendo. Gritei se ele estava maluco. "Somos indianos, Sandhya", ele me disse impaciente. "Viemos ao Brasil fugindo daqueles homens. Um assassinato desses aparecerá nos jornais, é o tipo de trajédia incomum que as pessoas gostam de ouvir. Você viu o bilhete que nos deixaram. Não acho que chamar atenção para o caso seja o melhor para nós. Não. Vamos nos esconder. Vamos ficar bem quietinhos, até a polícia esquecer o que aconteceu, e aí torceremos para que Abhaya tenha tido sua vingança."
Abhaya. Então esse era o nome do responsável pela destruição de minha família. Papai deve ter conseguido enganá-lo. Era dele que tínhamos conseguido tanto dinheiro. E agora aquele homem tirou de mim algo mais precioso do que toda a fortuna presente no planeta. Enquanto meu irmão dirigia velozmente pelas estradas, o ódio àquele homem cujo rosto eu desconhecia parecia crescer cada vez mais em mim, até que finalmente o cansaço me venceu e eu adormeci.
À primeira oportunidade, Kashi vendeu o trailer para uma loja de veículos usados no interior e comprou um pequeno motorhome. Por meses viajamos pelo país, nunca ficando mais de três dias na mesma cidade. Eu me preocupava com a loja, em São Paulo, mas Kashi me assegurou que tantas eram as que fechavam e reabriam no centro da cidade que ninguém iria notar. Quando finalmente voltamos para casa, ele parecia ter razão: reabrimos a loja sem que os clientes parecessem estranhar. De certo modo, a incapacidade de meu pai de falar português o impedia de cativar os clientes, fazendo com que não tivéssemos uma clientela fiel e regular. Isso atrapalhou os negócios no inicío, até atingirmos uma rotatividade de compradores suficiente para nos manter financeiramente, mas agora era uma vantagem considerável.
A pouca atenção atraída pela trajédia de minha família fora substituída pela queda de um avião francês, poucos dias após o assassinato de meus pais. A política do "pão e circo", que meu pai comentara comigo certa vez, realmente funciona, e o show parece mudar de foco rapidamente: basta uma nova história chocante surgir na mídia. Assim, continuamos tocando a loja, Kashi e eu, rezando para que aqueles homens não voltem a nos procurar. A saudade que sinto de meus pais às vezes é superada pelo ódio que sinto do tal Abhaya. Mas Kashi mandou-me ser forte. Disse que papai e mamãe gostariam que vivêssemos uma vida normal, na medida do possível. E esse tem sido meu objetivo desde então: esforçar-me, ao máximo, para viver uma vida normal.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Memórias

Lembro-me como se fosse ontem o dia em que minha família se mudou para o Brasil. Eu tinha 8 anos. Papai havia feito um ótimo negócio na cidade em que morávamos: Dehli. Havíamos ganho tanto dinheiro, mamãe mal pôde conter as lágrimas. Kashi logo começou a insistir que papai investisse o dinheiro: eu não sabia bem o que isso significava, e continuo sem saber, mas Kashi sempre dissera que era um jeito fácil de se ganhar dinheiro fazendo praticamente nada. Papai não quis saber. "Nosso povo é tradicionalmente comerciante", repetia ele. "O comércio corre em nossas veias". O comércio corre em nossas veias? Eu não entendia nada daquilo. Confesso que prestava pouca atenção. Minha mãe comentava comigo que poderíamos comprar tecidos novos, e isso me interessava muito mais no momento.
E então aconteceu. Naquele dia fatídico, papai escancarou a porta do trailer, gritando para que pegássemos tudo o que podíamos carregar. No meio da correria, eu só ouvia "Sandhya, pegue suas coisas logo! Depois explicamos tudo!". Coloquei meus pertences em uma mochila, cambaleando pelo trailer enquanto papai dirigia velozmente até o aeroporto. Lembro-me de minha mãe gritando "Mas para onde??", e meu pai respondendo, após uma pausa: "para... o Brasil!".
Assim viemos parar aqui. Por meses mudamos de pensão em pensão, sem que me explicassem ao certo o que estava acontecendo. Bom, costumávamos viajar muito quando eu era pequena, então mudanças não eram problema para mim. Só me incomodavam os chochichos entre meus pais e meu irmão, que sempre cessavam quando eu entrava no aposento. Por que não me contar logo o que estava havendo? Eu podia sentir que algo estava errado. Muito errado.
Foi na primavera quando meu pai conseguiu comprar um sobradinho. Ele parecia ávido por gastar o dinheiro que tinha ganho em Dehli. Montamos uma pequena loja no andar de baixo, que logo começou a funcionar, graças à experiência de meu pai e meu irmão. Passei a ajudar nas vendas depois da escola. No começo foi muito difícil aprender a falar português, mas eu e o Kashi nos adaptamos bem. Papai e mamãe não aprenderam direito ainda, então nós temos que ajudá-los, mas tudo bem.
Ainda não me disseram o motivo verdadeiro para termos vindo às pressas para esse país de cultura tão diferente da nossa. Papai me mandou tomar cuidado, e sempre prestar atenção se tem alguém me seguindo. Ele diz que é porque São Paulo é uma cidade grande. Mas Dehli também é, e ele nunca foi tão preocupado enquanto morávamos lá. Tenho um pressentimento ruim sobre isso tudo. Será que corremos perigo?